domingo, 29 de novembro de 2009

CAMINHADAS (FL.SCHROEDER 2ªQUINZ.OUT/09)

O poeta e o cão caminham. Há dúvidas sobre quem leva quem. Ora é o cão arrastando o poeta, logo mais é o poeta incitando o cão a lhe seguir. Há, porém certos momentos em que as patas do cão e os pés do poeta formam como que outro ser, um ser de seis patas, atravessando a noite e a vida extremamente solitário. Ambos andam e se sentem deslocados, subtraídos dos seus mundos. O poeta cavalga nuvens, quer alcançar as estrelas. O cão carrega uma lembrança atávica de muita neve, grandes geleiras e uma necessidade imperiosa de correr pelo branco vazio dos pólos. Tanto o cão quanto o poeta sonham possibilidades nunca vividas, apenas pressentidas como possíveis. Tanto o poeta quanto o cão não sabem por que cá estão, sentem apenas que há um longo e estranho caminho que deve ser percorrido, visto, cheirado e vivido intensamente.
Longe, perdido entre os morros de sua cidade, ou aldeia, como o poeta prefere chamar seu pequeno mundo, há música, alguém ensaia uma canção nova, uma tentativa de cantar a estranha realidade sensorial que chamamos de vida. O poeta soube que Mercedes Sosa, a grande voz das Américas, se calou, mas outras vozes se erguerão, certamente, e cantarão, ele espera, “gracias a la vida”. O vento frio no rosto marcado do poeta conta histórias de tantos mundos, tantas vidas. O caminho do cão e do poeta é cercado de casas fechadas, cheias de pessoas quem temem abrir as janelas que lhes ponham em contato com o universo, pois o lado de fora de suas portas e janelas lhes parece hostil, jamais colocariam seus pés no chão, preferem a realidade esterilizada das notícias que lhes são transmitidas em aparelhos de alta definição. Observam o poeta e o cão que passa e sentem a estranheza do mistério que os leva a caminhar e sentem medo.
As pessoas temem o poeta, pois a poesia as leva a regiões da alma que não ousam perscrutar. Seus corações batem descompassados ante o medo de que o vento passe a poesia dos pés, do poeta que caminha, pelas frestas das suas seguras casas. Os passos do poeta lhes soam como o canto das sereias, um terrível chamado ao mergulho ao fundo de mistérios apenas pressentidos. Uns poucos, escondidos na penumbra das cortinas de renda, respiram profundamente e ousam, apenas por um momento, sonhar. São, porém, logo recapturados pelos televisores e pelos controles remotos momentaneamente esquecidos em suas poltronas. Quem precisa caminhar e sonhar se, ao toque de alguns botões, pode trazer centenas de canais para dopar sua mente, as mais variadas formas de ilusão ao seu dispor, todas prometendo algo, mas também silenciosamente sugando todo o vigor de sua vida?
Há noites, porém, em que o poeta e o cão atravessam verdadeiras tempestades. Ventos, raios e trovões prenunciam chuva forte. Ouvem a água que se aproxima para lavar seus corpos e almas. O poeta recebe no rosto as primeiras gotas e começa a cantarolar alguns versos tristes: “gostaria de morrer, como morrem as nuvens, chover meus restos sobre um campo seco, depois brotar feito flor selvagem, uma rosa ainda não vista, cor veludo-sangue, fragrância ilusão, em cada espinho uma lança a me defender de mãos intrusas que me tentem colher, não quero ser flor de capela, nem de morto, nem de lapela, a mim basta simplesmente ser néctar para uma borboleta ou um sonho na cabeça de um poeta”.
Assim os olhos do poeta e os olhos do cão são inundados por lágrimas de chuva, mas quem poderá saber o que são lágrimas e o que é chuva? Como adivinhar as angústias que povoam o espírito do poeta e a alma do cão?

Nenhum comentário: