quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

REVEILLON (FL.SCHROEDER 2ªQUINZ.DEZ/09)

Enquanto para algumas pessoas o ano demorou, muitos afirmam que não o viram passar. O tempo escapa por entre os dedos e mais uma vez estamos nos preparando para o “reveillon”, para o despertar de mais um ano. Comportamo-nos como se fosse possível apagar todas aquelas lembranças desagradáveis do ano que se encerra e nos armamos com as centenas de pequenas superstições que herdamos das tradições. Ávidos pesquisamos quantos grãos de lentilha são necessários para que no próximo ano nossa mesa seja farta. Enchemos nossas carteiras com sementes de romã e também é possível guardar de 3 a 7 bagos de uva na bolsa, tudo para que não nos falte dinheiro. A carne de porco deve ser o prato principal da ceia, servida à meia-noite. Como o porco fuça para a frente, garante armários cheios o ano inteiro. Evite aves, pois ciscam para trás. Afogar o ganso então, nem pensar.
A dona de casa deverá limpar a casa, varrendo-a de trás para frente, deixar o lixo fora segundo alguns; outros, mandam jogar no mar (poluindo a santa natureza). As vassouras devem ser queimadas e as cinzas enterradas. Nada quebrado deve ser deixado na casa (jarros de planta, garrafas, copos, pratos e espelhos). Lavar os batentes da casa com sal grosso e água, ou água do mar. Borrifar a casa com água-benta nos quatro cantos. O bom mesmo é pintar toda a casa, colocar lâmpadas novas (não deixar lâmpadas queimadas). Verificar se os sapatos estão desemborcados e se as roupas não estão pelo avesso. E as flores da casa devem ser amarelas para chamar ouro. Tudo isso para atrair a boa sorte, os bons fluidos no Ano Novo que vai chegar.
Superstições e brincadeiras a parte, creio que muitos dos meus leitores entendem que o ano que começa nos trará tão somente aquilo que semearmos, ou melhor aquilo que construirmos com nosso trabalho, nosso estudo, mas grande parte da nossa humanidade ainda espera por soluções mágicas. A mente humana é uma máquina lógica imperfeita e baseia suas conclusões sem base científica, sem conhecimento das reais implicações do que se denomina causa e efeito. Renato Sabbatini, da Unicamp, escreveu que uma das armadilhas mais comuns em que a mente humana cai, é chamada de efeito "propter hoc". Esse nome vem de uma frase em latim: "Post hoc ergo propter hoc", e que significa "se algo acontece depois disso, então é devido a isso". É como se fosse uma relação causa-efeito que parece existir devido à proximidade temporal entre dois eventos, mas que, na realidade, não têm conexão entre si. Um exemplo em medicina é dado por uma frase aparentemente brincalhona, mas que tem implicações bastante sérias: "Se uma gripe não for tratada, ela dura uma semana, se for tratada, dura apenas sete dias".
Eu, pessoalmente, ando meio descrente. Cansei das frases feitas, dos cartões que se repetem, das cidras e dos espumantes que só me deixam com dor de cabeça e dos foguetes que atrapalham o silêncio que procuro. Nego-me, portanto, a comer lentilhas, romãs e bagos de uva. Dos porcos quero distância e as aves deixarei que voem e procurem outros verões. Talvez coma um pedaço de melancia, vestindo uma cueca velha e bem colorida e ficarei cuspindo as sementes sobre as cabeças dos bêbados da calçada. Não desejarei feliz ano novo, pois sei muito bem que o que importará no próximo ano não são meus desejos, mas sim o que cada um fará com seus próprios desejos. Vou encher meus bolsos com muitas letras, para que eu possa continuar escrevendo minhas loucas idéias. Até o ano que vem...

MARIONETIZAÇÃO (F.SCHROEDER 1ªQUINZ.DEZ/09)

Sempre que vou escrever mais uma crônica e encaro a tela do computador em branco, sinto um frio na barriga, pois é uma conversa ao pé do ouvido, ou talvez dos olhos, dos possíveis leitores. Aproximamo-nos de mais um final de ano e estou cercado de pessoas que correm freneticamente, de loja em loja, de shopping em shopping, procurando e comprando coisas, como se elas pudessem preencher o vazio que as torna tão ávidas por novos brinquedos, novas necessidades criadas por marqueteiros formados em psicologia, para assim descobrir por quais meandros do pensamento infiltrar cada vez mais a compulsão por consumir.
Vivemos agora a época do ano, que pelas tradições cristãs, chamamos de advento, as quatro semanas que antecedem o Natal. Advento: espera. Mas esperar o que se sabemos que tudo o que acontece é conseqüência de algum ato anterior? Vivemos hoje os resultados das desastradas atitudes dos nossos antepassados e cabe a nós a ousadia de mudar os paradigmas tão erroneamente enraizados em nossas atitudes, em nosso modo de desfrutar a vida.
Se olharmos com atenção percebemos que do universo de mais de seis bilhões de humanos que convivem hoje no planeta, uma pequena minoria, senhora das corporações que dirigem os destinos da humanidade, é quem manipula nossas atitudes, como se marionetes fôssemos. Sutilmente, determinam quais roupas vestir no outono, que comidas devemos comprar, listam as leituras da hora, os filmes que nos entreterão nas férias do verão e os programas televisivos que animarão nossas noites insones.
Dezembro é também o mês das muitas formaturas, dos vestibulares, das esperas angustiantes, para alguns, dos resultados. Para muitos estudantes que migrarão do ensino médio para a faculdade é o mês do advento de um recomeçar, ou melhor, de subir mais um degrau da íngreme estrada do conhecimento.
A única forma que temos de romper os cordões que nos tornam marionetes das vontades alheias é o estudo, a procura constante de mais conhecimento. Porém, caros amigos, estudar é mais que apenas acumular conhecimentos e técnicas que nos tornam ferramentas úteis dentro da engrenagem montada para produzir e consumir sempre mais. Chegou o momento de olhar para dentro de nós mesmos. As férias de final e início do ano podem, se estivermos atentos, nos mostrar o quanto estamos desligados do meio que nos contém: a terra como mãe e provedora de tudo o que temos e somos.
A mesma humanidade que através dos satélites lança olhares rumo ao infinito das milhares de galáxias, cheias de possibilidades, de mistérios que, lentamente, vão se revelando, como se arrancássemos os véus que nos escondem os mistérios do passado do universo – é a humanidade que ainda não consegue, ou não tem coragem de olhar para dentro de si mesma. Permitimos que uma minoria nos diga quem somos e a história nos tem mostrado que, através dos milênios da nossa caminhada rumo aos dias atuais, já fomos descritos e definidos das mais diversas formas. Criamos religiões e deuses à nossa imagem e semelhança e, até hoje, guerreamos em nome da fé. Falta-nos a coragem, ao menos para a grande maioria ainda falta, de assumirmos nossa pequenez e nossa fragilidade dentro do universo que conhecemos.
Raul Seixas numa de suas músicas nos adverte cantando que “buliram muito com o planeta, e o planeta como um cachorro eu vejo, se ele não aguenta mais as pulgas, se livra delas num sacolejo”. Abramos os olhos enquanto ainda é possível
!

domingo, 29 de novembro de 2009

PANIS ET CIRCENSES (FL.SCHROEDER 2ªQUINZ.NOV/09)

Nas ruas das cidades milhares de luzes coloridas piscam freneticamente. Apagão? Onde? O natal se aproxima e novembro já antecipa um pouco do calor do verão que ainda nem começou. Pessoas andam e trabalham freneticamente. As vitrines expõem tudo o que é possível imaginar, quase tudo supérfluo. Os departamentos de marketing e vendas criam sempre novas necessidades. Tudo aquilo que você comprou e presenteou no ano passado já está ultrapassado e, certamente, seus filhos, esposas, maridos e amigos esperam que você renove seus estoques de lembranças. Monta-se o grande espetáculo das festas de final de ano. Algumas pessoas talvez até ainda lembrem que o natal já foi uma festa religiosa, o aniversário do Cristo, mas a grande massa humana quer mesmo fazer festa em grande estilo. Repetem-se as frases de sempre; feliz natal, feliz ano novo...
Resta hoje muito pouco do charme religioso das festas de final de ano. O grande astro e personagem principal é mais conhecido como Papai Noel. Mas quem é ou foi esse gordo e estranho personagem? Alguns estudiosos afirmam que a figura do “bom velhinho” foi inspirada num bispo chamado Nicolau, que nasceu na Turquia em 280 d.C., homem de bom coração que ajudava os pobres deixando saquinhos com moedas próximos às chaminés das casas. Até quase o final do século XIX, o Papai Noel era representado com roupas de inverno na cor marrom ou verde escuro. O cartunista alemão Thomas Nast, em 1886, criou uma nova imagem colorindo as roupas nas cores vermelha e branca, com cinto preto e apresentando a versão na revista Harper's Weeklys neste mesmo ano.
Em 1931, uma campanha publicitária da Coca-Cola mostrou o Papai Noel com as roupas criadas por Nast, que também eram as cores do refrigerante. A campanha fez enorme sucesso e espalhou a nova imagem do Papai Noel, ou Santa Claus, pelo mundo. Desde então a figura do velhinho de barbas brancas, que vem lá do Pólo Norte em seu trenó, puxado por renas, sempre acompanhado pelos duendes, está cada vez mais associado ao voraz consumismo que marca nossa época. Milhões de crianças, pelo mundo todo, esperam ansiosas que o velhinho lhes traga todos os presentes que enchem as vitrines, para o desespero dos pais. E assim, ano após ano, remonta-se o espetáculo que, dessa forma, nos distrai, faz com que esqueçamos as agruras do ano que finda e nos enche de utópicas esperanças para o ano novo.
Como na Roma antiga, o povo quer mesmo é pão e circo. No nosso caso, no Brasil, mais circo que pão. Nossos governantes suprem através dos mais diversos “vales” as necessidades básicas, aquelas mais rasas. O show deve continuar, pois afinal logo, logo, teremos a Copa do Mundo de Futebol, depois as Olimpíadas e, para suprir qualquer necessidade maior há o petróleo do pré-sal adiante. Para o próximo ano teremos eleições e, provavelmente mais uma vez, seremos bombardeados com soluções milagrosas, promessas que não sobrevivem um dia após a posse, pois o povo não tem memória mesmo.
Arma-se um circo enorme e permitimos que nos iludam. Pergunto aos meus leitores o que faremos quando o circo pegar fogo e descobrirmos que poderíamos ter feito um mundo melhor, mais justo, mais harmônico. Como seria nosso planeta, nossa humanidade, se realmente investíssemos em educação, mas uma educação focada no bem viver, no realmente ser ao invés de apenas ter?

REPROVAÇÃO ESCOLAR (FL.SCHROEDER 1ªQUINZ.NOV/09)

Na divulgação do meu trabalho poético-musical visitei várias escolas da região e, conversando com os professores, ou melhor, com as professoras, já que elas são a maioria no ensino fundamental, percebo uma preocupação muito grande com a possibilidade de reprovar ou não alunos não preparados para o próximo ano ou série. Sou de um tempo em que nem se discutia a questão da reprovação, pois estava já implícito que o aluno deveria atingir notas mínimas para passar de ano. O ensino fundamental, naqueles tempos, era dividido em primário e ginásio e para cursar o ginásio não bastava apenas passar de ano, era preciso passar por um exame de admissão. A alfabetização era na base do be-a-ba, be-e-be e assim, decorando, aprendíamos a ler em poucos meses. Ler e escrever eram naqueles não tão longínquos tempos, essenciais a introdução de qualquer outra matéria escolar.
Não pretendo, de modo algum, sugerir que retrocedamos no tempo, mas é preciso que aqueles que atualmente definem os métodos de ensino analisem com mais profundidade se estamos no caminho certo ou se nos desviamos e não temos a coragem de admitir as falhas metodológicas que hoje vemos serem aplicadas em nossas escolas, principalmente as da rede pública. Há, percebo, uma preocupação estatística com fins meramente de promoção política, quando são analisadas as taxas de reprovação e evasão escolar. Escolas que reprovam menos são citadas como referência.
Vejo em muitas escolas alunos frequentando o quarto ou quinto ano do ensino fundamental sem saberem ler. Preocupante é saber que esses alunos são obrigados a estudar com as turmas regulares, tudo em nome de uma suposta inclusão, que se friamente analisado acaba os prejudicando, pois precisariam de um acompanhamento diferenciado, como também estão sendo prejudicados os outros trinta ou mais alunos da mesma turma que poderiam avançar nos estudos e são obrigados a dividir uma professora, ou professor, nem sempre preparados para dar conta do problema que lhes é colocado.
Num momento em que deveríamos nos preocupar em melhorar e adaptar nossos métodos de ensino às novas tecnologias, tais como internet e tantos outros recursos hoje disponíveis, infelizmente estamos retrocedendo e nivelando por baixo nosso ensino fundamental. Formamos multidões de adolescentes semi-analfabetos, ou analfabetos funcionais, como costumamos chamar aqueles que mesmo sabendo ler não conseguem interpretar um parágrafo de qualquer assunto. Enquanto isso nossos políticos gastam seu tempo em estabelecer cotas raciais para o ingresso nas faculdades, como se o acesso a um curso superior apagasse ou tivesse a capacidade de recuperar uma base de aprendizado completamente falha.
Conclamo os pais e professores para que juntos repensem o modelo atual antes que joguemos na lata de lixo mais uma geração de estudantes, pois de nada adianta capricharmos no telhado de uma construção se sua base está fraca e, mais tarde levará tudo ao chão. Se nós não exigirmos mudanças que impliquem numa real melhoria nos métodos de ensino, tais como a qualificação e acompanhamento profissional daqueles que hoje comandam as tantas salas de aula do nosso país, jamais alcançaremos o nível dos que investem pesado na formação dos seus cidadãos. Formaremos, na melhor das hipóteses, mão de obra barata para as grandes corporações que comandam a economia mundial.

CAMINHADAS (FL.SCHROEDER 2ªQUINZ.OUT/09)

O poeta e o cão caminham. Há dúvidas sobre quem leva quem. Ora é o cão arrastando o poeta, logo mais é o poeta incitando o cão a lhe seguir. Há, porém certos momentos em que as patas do cão e os pés do poeta formam como que outro ser, um ser de seis patas, atravessando a noite e a vida extremamente solitário. Ambos andam e se sentem deslocados, subtraídos dos seus mundos. O poeta cavalga nuvens, quer alcançar as estrelas. O cão carrega uma lembrança atávica de muita neve, grandes geleiras e uma necessidade imperiosa de correr pelo branco vazio dos pólos. Tanto o cão quanto o poeta sonham possibilidades nunca vividas, apenas pressentidas como possíveis. Tanto o poeta quanto o cão não sabem por que cá estão, sentem apenas que há um longo e estranho caminho que deve ser percorrido, visto, cheirado e vivido intensamente.
Longe, perdido entre os morros de sua cidade, ou aldeia, como o poeta prefere chamar seu pequeno mundo, há música, alguém ensaia uma canção nova, uma tentativa de cantar a estranha realidade sensorial que chamamos de vida. O poeta soube que Mercedes Sosa, a grande voz das Américas, se calou, mas outras vozes se erguerão, certamente, e cantarão, ele espera, “gracias a la vida”. O vento frio no rosto marcado do poeta conta histórias de tantos mundos, tantas vidas. O caminho do cão e do poeta é cercado de casas fechadas, cheias de pessoas quem temem abrir as janelas que lhes ponham em contato com o universo, pois o lado de fora de suas portas e janelas lhes parece hostil, jamais colocariam seus pés no chão, preferem a realidade esterilizada das notícias que lhes são transmitidas em aparelhos de alta definição. Observam o poeta e o cão que passa e sentem a estranheza do mistério que os leva a caminhar e sentem medo.
As pessoas temem o poeta, pois a poesia as leva a regiões da alma que não ousam perscrutar. Seus corações batem descompassados ante o medo de que o vento passe a poesia dos pés, do poeta que caminha, pelas frestas das suas seguras casas. Os passos do poeta lhes soam como o canto das sereias, um terrível chamado ao mergulho ao fundo de mistérios apenas pressentidos. Uns poucos, escondidos na penumbra das cortinas de renda, respiram profundamente e ousam, apenas por um momento, sonhar. São, porém, logo recapturados pelos televisores e pelos controles remotos momentaneamente esquecidos em suas poltronas. Quem precisa caminhar e sonhar se, ao toque de alguns botões, pode trazer centenas de canais para dopar sua mente, as mais variadas formas de ilusão ao seu dispor, todas prometendo algo, mas também silenciosamente sugando todo o vigor de sua vida?
Há noites, porém, em que o poeta e o cão atravessam verdadeiras tempestades. Ventos, raios e trovões prenunciam chuva forte. Ouvem a água que se aproxima para lavar seus corpos e almas. O poeta recebe no rosto as primeiras gotas e começa a cantarolar alguns versos tristes: “gostaria de morrer, como morrem as nuvens, chover meus restos sobre um campo seco, depois brotar feito flor selvagem, uma rosa ainda não vista, cor veludo-sangue, fragrância ilusão, em cada espinho uma lança a me defender de mãos intrusas que me tentem colher, não quero ser flor de capela, nem de morto, nem de lapela, a mim basta simplesmente ser néctar para uma borboleta ou um sonho na cabeça de um poeta”.
Assim os olhos do poeta e os olhos do cão são inundados por lágrimas de chuva, mas quem poderá saber o que são lágrimas e o que é chuva? Como adivinhar as angústias que povoam o espírito do poeta e a alma do cão?

ÁGUAS

ÁGUAS (FL.SCHROEDER 07/10/09)

Gil Salomon

Chove forte. O barulho da água no telhado dá uma vontade de ficar na cama, mas não tem como. Lá fora o mundo me aguarda, trabalho, escola, compromissos diversos que terão que ser cumpridos, quer chova ou faça sol. Levanto, abro as persianas e meu quarto é inundado pela luz difusa que entra pelos vidros molhados da minha janela. Vejo algumas saracuras passeando no gramado indiferentes, ou melhor, creio eu, contentes com a água que desce das nuvens. Olho para as montanhas que cercam nosso vale e um pensamento preocupante toma meu começo de dia, pois sei que muitos estão, quem sabe, já acordados desde a madrugada, receosos e ainda lembrando-se das chuvas da última primavera que arrastou com suas águas, tantas casas e tantas vidas.
Dirigindo-me ao trabalho percebi, ao passar pela ponte sobre o rio Itapocuzinho, que as águas estavam volumosas e barrentas. Lembro, e não faz tanto tempo, que quando chovia muito o rio enchia, mas a cor das águas ficava levemente acinzentada e não da cor de barro que tem atualmente. Resolvi, pois, fazer uma pequena pesquisa sobre a água e nossa relação com ela.
A água ocupa 70% da superfície da Terra. A maior parte, 97%, é salgada. Apenas 3% do total é água doce e, desses, 0,01% vai para os rios, ficando disponível para o uso. O restante está em geleiras, icebergs e em subsolos muito profundos. Ou seja, o que pode ser potencialmente consumido é uma pequena fração. Há muita coisa a saber a respeito da água. Ela está presente nos menores movimentos do nosso corpo, como no piscar de olhos. Afinal, somos compostos basicamente de água. Esse líquido precioso está nas células, nos vasos sanguíneos e nos tecidos de sustentação. Nossas funções orgânicas necessitam da água para o seu bom funcionamento. Em média, um homem tem aproximadamente 47 litros de água em seu corpo. Diariamente, ele deve repor cerca de 2 litros e meio. Todo o nosso corpo depende da água, por isso é preciso haver equilíbrio entre a água que perdemos e a água que repomos.
A quantidade de água existente no planeta não aumenta nem diminui. Acredita-se que a quantidade atual de água seja praticamente a mesma de há três bilhões de ano. Isto porque o ciclo da água se sucede infinitamente. Não seria engraçado se o alimento que comemos ontem tivesse sido preparado com as águas que, tempos atrás, foram utilizadas pelos romanos em seus famosos banhos coletivos?
Sempre que chove preocupamo-nos logo com as enchentes, mas esquecemos que as enchentes são fenômenos naturais dos regimes dos rios. Elas passam a ser um problema somente quando o homem invade os limites dos rios removendo as várzeas, desmatando e se instalando as suas margens. Em nossa região as chuvas preocupam porque resolvemos cortar nossas montanhas e construir cada vez mais alto, esquecendo que a natureza procura sempre o equilíbrio e, mais cedo ou mais tarde o encontrará novamente, nem que seja à custa do sacrifício das nossas vidas.
Creio que, talvez, o maior desafio do século vinte e um seja administrar o consumo da água, tão rara para alguns e tão catastrófica para outros. Tomo um cafezinho e olho para a janela do meu escritório torcendo para que as nuvens permitam a vinda do sol. E você leitor, o que está fazendo, ou pensa fazer para equilibrar novamente o ciclo das águas? Apenas lembre que depois do estrago feito não adianta rezar. Tome, pois, atitudes que nos garantam um futuro melhor no Planeta Água.

11 DE SETEMBRO

11 DE SETEMBRO (FL.SCHROEDER 21/09/09)

Gil Salomon

Dois mil e um. No ar o cheiro dos fogos comemorativos do início de um novo milênio. De repente silenciamos, o impossível estava sendo transmitido para o mundo no momento em que acontecia. Depois de assistirmos a tantos filmes descrevendo futuras catástrofes, víamos nas imagens algo de surreal, fruto talvez de efeitos especiais tão comuns no cinema. A verdade, porém, foi se instalando em nossas mentes incrédulas e, pouco a pouco, foi nos colocando com os pés no frio chão da realidade humana, que não mudara apenas porque nossos calendários assumiram um novo número. O império sentiu-se frágil frente ao desconhecido. As torres gêmeas, símbolo de uma América se impondo ao mundo, viraram pó, e junto com elas milhares de vidas humanas. Assistimos, desde então, uma caça desesperada ao que chamamos de terrorismo internacional. Em nome da chamada “democracia” norte-americana justifica-se as piores barbáries pelo mundo. Invadiu-se o Afeganistão numa suposta busca ao líder da Al-qaeda, Osama Bin Laden, e sensibilizou-se o resto do mundo exibindo as burcas das muçulmanas, justificando, dessa forma nossa suposta superioridade como defensores da liberdade individual, mas poucos se deram ao trabalho de lhes perguntar se queriam mudar seu modo de vida. Em seguida houve a invasão do Iraque, numa pretensa busca de armas químicas, jamais encontradas e tudo o que conseguiram foi a deposição e execução de um líder tirano, não mais cruel que aqueles que o depuseram. Qualquer um, que desenvolva um mínimo de raciocínio lógico, percebe que o grande negócio não envolve os povos, supostamente beneficiados pelos detentores do poder do império, mas sim, apenas e tão somente, a manutenção desse poder e o domínio dos que detém a maior riqueza energética, o petróleo.
É interessante observar como ambos os lados do conflito, império americano e povos muçulmanos, são defensores de vontades divinas. Do nosso lado luta o Deus cristão e do lado deles, lutando contra os infiéis, está Alá. Nós, pobres mortais, somos apenas massa de manobra, ora como soldados, ora como homens-bomba, ora como meros expectadores que não entendem tanta insanidade.
Há, porém, outros “onze-de-setembros” que não deveríamos esquecer. Foi no dia 11 de setembro de 1973 que as elites chilenas, apoiadas no exército e pela CIA, agência de inteligência do governo norte-americano, deram um golpe e derrubaram o presidente Salvador Allende no Chile. Allende foi o primeiro presidente socialista latino-americano eleito pelo voto popular. Até hoje não há consenso sobre se o mesmo se suicidou ou foi assassinado no palácio La Moneda. A verdade é que foi encontrado morto. O general Augusto Pinochet, após o golpe, manteve-se no poder por 17 anos e é responsabilizado por milhares de mortos e desaparecidos. Não podemos esquecer que foi apoiado pela igreja católica e, principalmente, pelo medo da classe média em perder privilégios conquistados em séculos de exploração.
Pablo Neruda, poeta, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura do ano de 1971, faleceu dias depois, em 23 de setembro de 1973, provavelmente de tristeza por ver seus sonhos ruírem com a morte do amigo Allende, a quem ajudou a ganhar as eleições.
Alguém talvez pergunte a razão de escrever sobre os “onze-de-setembros” e me adianto justificando que nossa memória histórica é curtíssima. Esquecemos rapidamente todos os horrores das guerras e atrocidades recentes e, assim sendo, não percebemos que talvez estejamos construindo um futuro ainda mais sangrento e negro.

PROFISSÃO OU VOCAÇÃO

PROFISSÃO OU VOCAÇÃO? (FL.SCHROEDER 05/09/09)

Gil Salomon

Sábado. Treze horas e trinta minutos. Agosto. Inverno no hemisfério sul. Sol. Um bando de crianças no campinho ao lado da escola vazia. Grandes cadeados a trancar-lhe os portões. O ginásio de esportes, também trancado, já tem as marcas do descaso com suas janelas e telhas quebradas. Na rua um homem com aparência de cansado tenta consertar um velho fusca. Um carro dobra a esquina em alta velocidade, o som no volume máximo, desvia de uma criança, que nem percebe o quanto esteve próxima de se transformar numa pasta vermelha, igual à de um cachorro que apodrece um pouco adiante. A rua asfaltada sobe o morro e desaparece numa curva. Casas iguais compõem o cenário. Uma igualdade deprimente, mas cheia de vida, vidas. Crianças correndo entre as casas e pela rua. Todas terrivelmente iguais em seus destinos traçados pelos que ficam sentados em salas com ar condicionado. Quer faça calor ou frio, suas temperaturas são sempre as mesmas. No ar a confusão de sons dos televisores, rádios, músicas diversas e muitas conversas.
Estávamos lá, eu e três amigos e parceiros musicais, esperando que aparecesse alguém, da escola ou da comunidade, e nos abrisse as portas para podermos iniciar a oficina de criação literária e musicalização, prevista para acontecer das quatorze às dezessete horas e trinta minutos. Através dessa oficina procuramos levar a poesia para o dia a dia das pessoas e temos como objetivo principal provar que a junção da poesia com a música pode ser uma forma de saudável catarse. Buscamos parcerias com escolas e associações de moradores dos bairros, mas, fora raras exceções, não está sendo fácil convencer os formadores de opinião, principalmente professores, da urgente necessidade de humanizarmos nossa forma de educar através, principalmente, da inserção do elemento artístico e lúdico na rotina da aprendizagem.
Não basta ser um profissional do ensino, pois para realmente prepararmos as gerações atuais torna-se necessária uma forte vocação humanitária e uma enorme fé na capacidade humana, mesmo convivendo com toda a brutalidade que a ignorância pode gerar. Independente da problemática salarial, que sabemos ser um grande problema para quem exerce o magistério, a sociedade precisa de professores e professoras que motivem os alunos a imitá-los em sua busca de sabedoria.
Nossas escolas estão nas comunidades, porém elas ainda não são um elemento ativo nessas mesmas comunidades. Precisamos tirar das escolas essa idéia de “formadoras de bons profissionais e cidadãos” e restituir-lhes sua verdadeira vocação que é a “formação do ser humano completo”. Entendemos como “ser humano completo” quem realmente em seu aprendizado consegue apreender e dar um sentido maior a vida que o simples acumular bens com valor monetário.
Para tanto nossos profissionais do magistério precisam, antes de qualquer coisa, eles mesmos sentir a beleza da vida ou ao menos vislumbrarem a possibilidade de incorporá-la aos seus dias.
Agora já é terça-feira, porém meus pensamentos ainda estão naquela vila, naquela rua. Meus olhos ainda não apagaram aqueles olhares desconfiados, curiosos, ávidos por conhecer algo novo. Durante todo o tempo que ficamos lá, aguardando aparecer alguém, até o momento em que fomos embora, um adolescente ficou sentado numa velha cadeira, próximo ao portão de uma das casas, olhando em nossa direção, ou quem sabe, em direção a escola e aos cadeados que não o deixavam entrar.

NOITE

NOITE (FL.SCHROEDER 21/08/09)

Gil Salomon

A noite foi se instalando lentamente, sorrateiramente. Nem percebemos quando começou a escurecer. Há tão pouco tempo corríamos como crianças, absortos em nossa primitiva irresponsabilidade. Rolávamos nossa inocência e nossa ignorância pelos gramados e encostas do mundo. Descemos das árvores, firmamos nossas frágeis pernas e exploramos as savanas. Buscamos a segurança das cavernas, mas logo começamos a construir as primeiras cabanas. Alguns galhos trançados cobertos com folhas a nos proteger do sol e das intempéries. Nômades, fomos descobrindo o mundo, coletando alimentos e buscando segurança para nossa prole. Do animal que nos gerou foi, lentamente, despertando rudimentos de consciência. Começamos a perceber e a nos encantar com o que nos cercava. Nossas fisionomias refletidas nos límpidos córregos de então ainda não entendiam a magia que nos envolvia. Uma lenta aurora, uma frágil luz, nos levava em direção ao entendimento da passagem do tempo. Provamos do fruto da árvore da ciência, o fruto proibido descrito no Gênesis bíblico.
Os grunhidos da fera deram lugar as primeiras palavras e com elas uma tentativa de entender o tosco universo em que vivíamos. Qual terá sido a primeira palavra que pronunciamos? Em que momento da nossa caminhada conseguimos formular as primeiras perguntas? Quando a linguagem deixou de ser um elemento apenas de comunicação a serviço da sobrevivência do grupo e passou a descrever sentimentos, histórias e foi posta a serviço do belo?
Milênios depois nós percebemos que vivíamos numa grande e lendária babel. Tornamo-nos diferentes, física e culturalmente. Numa tentativa de entender os mistérios do universo o povoamos de entidades abstratas e as chamamos de deuses. Potencializamos nesses deuses nossas próprias qualidades e vícios. Criamos religiões fortemente atreladas ao domínio político das tribos ou nações que iam se formando. Em nossa primeva ignorância, em sacrifício aos deuses, oferecíamos os frutos do trabalho, animais e, em algumas culturas, até imolávamos seres humanos para aplacar sua ira.
Das manifestações artísticas rabiscadas nas paredes das cavernas, numa tentativa de contar as gerações futuras sobre a rotina dos seus dias, até nossas modernas galerias de arte, continuamos ávidos por deixar nossa marca no tempo. Dos primeiros registros conhecidos da escrita suméria, cuneiforme, às nuvens digitais que procuram armazenar todo o conhecimento humano, percebe-se a insaciável curiosidade do espírito humano. Acumulamos tanto saber, porém falta-nos ainda a sabedoria para usarmos esse saber em benefício próprio.
Pensando nas primeiras flautas, esculpidas em ossos, e na percepção musical do vento nas montanhas, savanas ou geladas estepes, e comparando-as aos modernos e sofisticados instrumentos das nossas orquestras que reproduzem o que imaginamos como música celestial, lamento perceber que caminhamos para uma noite sem perspectivas de um novo amanhecer. Chegamos a um estágio muito avançado em percepção do que poderíamos chamar de essência do belo e, ao mesmo tempo, avançamos perigosamente para o limite do que nosso habitat, o belo e azul planeta Terra, pode suportar. Alastramos nossa voracidade com tal frenesi que, por onde passamos, deixamos um rastro de morte e desolação. A grande massa humana que hoje convive, cada um percebendo apenas suas próprias necessidades, deixou-se cegar pela intensa luz do seu próprio egoísmo.

INSANIDADE

INSANIDADE (FL.SCHROEDER 05/08/09)

Gil Salomon

Indigna-me ouvir o discurso insano de quem diz falar em nome de um deus e esquece seu frágil lado humano, parido da mesma terra, vivendo no mesmo plano, equilibrado sobre a frágil linha que o diferencia das demais criaturas, que inocentes e puras vivem o divino instinto, perpetuando a vida que, do caos gerada, embeleza esse pequeno planeta azul.
A insanidade das muitas teorias, dos tratados políticos aos livros sagrados, gerou esse momento apocalíptico e esse voraz consumismo, que nos faz gafanhotos, canibais de nós mesmos. Comparando o que fazemos com nossas crianças, com nossas mulheres, com nossos irmãos, nossas mais tenras esperanças mortas ano após anos, concluímos que Calígula, em toda a sua loucura, foi o maior dos puritanos.
Os dois parágrafos acima foram escritos como poema, num momento de reflexão sobre nossa falta de percepção da frágil realidade que nos acolhe. Pela janela tenho a visão de uma montanha, rasgada, fatiada por tratores, sendo transformada em algum projeto imobiliário. Tratamos a terra como se fossemos proprietários e não meros inquilinos. Esquecemos que somos apenas um pequeno elemento que evoluiu, para uma forma diferente de percepção. Julgamo-nos superiores às demais formas de vida. Assenhoreamo-nos de tudo e procuramos mil formas de nos justificarmos perante nossas consciências.
Diariamente somos informados das tragédias naturais, a maioria causada por nossas impensadas ações, mas ao invés de agirmos preferimos encará-las como se nada pudéssemos fazer, tratamos tudo como fatalidades. É mais fácil transferirmos a responsabilidade a algum fator oculto, podemos chamá-lo de Deus, destino, ou qualquer outra denominação. Tudo é válido desde que não tenhamos que assumir as responsabilidades. Ouço, ao longe, sinos chamando as pessoas para orarem. Elas irão, preocupadas em garantir a eternidade. Perceberão que a eternidade é aqui? Ouvirão a suave música que envolve o silêncio do tempo, sempre agora. Provavelmente não...
A terra sangra, a humanidade sangra, mas não percebemos. Não distinguimos mais nosso próprio sangue daquele que derramamos à medida que, vorazmente, nos apropriamos de tudo. Construímos a história sobre nossos próprios escombros. Ferimos a natureza sem perceber que somos parte dela e não algo distinto ou superior. Silenciamos ante os estertores da vida. Escrevemos bibliotecas inteiras de livros justificando cada uma das nossas insanidades políticas, econômicas ou religiosas, porém falta-nos a coragem para escrever a única história que nos salvará: aquela que nos leve a praticar atos que respeitem a interdependência do universo. Somos uma ínfima parte do todo, mas foi nos dada a capacidade da percepção do belo. Usemos pois essa sensibilidade para deixar florescer nossa natural fraternidade. O inferno que construímos pode ser o paraíso dos nossos descendentes se mudarmos nosso modo de vida. Não será fácil, pois teremos que derrubar paradigmas profundamente enraizados em nossa cultura consumista. Sabemos que não há outro caminho além do próprio extermínio da humanidade se não tomarmos medidas urgentes, pois quanto mais adiarmos essas mudanças mais sofrerá, ou seja, pagaremos um alto preço pela nossa atual indiferença. Não quero ser nenhum tipo de profeta alarmista, apenas sugiro que abramos os olhos para o que nos cerca e reflitamos sobre o modo como tratamos nossos semelhantes.

LIVROS

LIVROS (FL.SCHROEDER 15/07/09)

Gil Salomon

Livros. Feira do Livro de Jaraguá do Sul. Nada mais oportuno que refletirmos sobre a importância dos livros e da leitura. Cláudio de Moura Castro, em crônica publicada na Revista Veja, edição 2120, de oito de julho de 2009, expressa sua preocupação com a deficiência no ensino da linguagem. Segundo ele, “nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo”. Segundo o antropólogo Richard Leakey: “Nossos pensamentos, o mundo de nossa imaginação, nossas comunicações e nossa rica cultura são tecidos nos teares da linguagem... A linguagem é o nosso meio... É a linguagem que separa os humanos do resto da natureza.” O filósofo Ludwig Wittgenstein coloca que “os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento”. Doris Leesing, escritora britânica e Prêmio Nobel de Literatura de 2007, afirma que “quando se corrompe a linguagem logo se corrompe também o pensamento de um povo”. Ainda segundo o colunista, “o bom ensino precisa ter como alvo número um a competência linguística”.
Após a invenção da escrita, o livro tornou-se a mais fiel testemunha da saga humana e, também, passou a ser seu maior tesouro, pois em suas folhas, muitas vezes surradas e amareladas, preservou todas as grandes conquistas humanas, tanto no terreno especulativo, artístico e filosófico quanto no aprimoramento das técnicas que tornaram possível o avanço científico que hoje presenciamos. Fantásticas viagens, aventuras, sonhos, reflexões, questionamentos – tudo isso nos é entregue ao avançarmos os olhos pelas páginas de um livro. Assim como não vemos o mesmo rio duas vezes, devido à eterna passagem das suas águas, também não há duas leituras iguais de um mesmo texto ou de uma mesma obra. Cada leitor interpreta um livro de acordo com seus conceitos ou seus filtros, culturais e morais. O próprio autor ao reler o que escreveu, muitas vezes, já faz uma leitura diferente da idéia original. O texto ganha vida própria, cria asas e se projeta no tempo, muito além das nossas finitas vidas...
A capa de um livro é uma porta que nos leva a um universo atemporal. Nesse contexto é possível discutir com Confúcio que nos instiga “a não procurar saber as respostas, mas sim compreender as perguntas” ou me adverte dizendo: “se não sabes, aprende, se já sabes, ensina”. Aprendo com Lao Tsé que “as palavras verdadeiras não são agradáveis e as agradáveis nem sempre são verdadeiras”. Percebemos dessa forma que a leitura não está aí para nos revelar todas as verdades, nem nos trazer todas as soluções. A leitura deve nos arrancar da zona de conforto e marasmo em que, muitas vezes, nos encontramos, para nos colocar no caminho da busca constante por mais saber, pois o que importa em nosso viver é a caminhada consciente em direção ao mistério final.
A história tem nos mostrado que a leitura sempre causou medo aos poderosos, pois sabem que um povo instruído, um povo que domina a linguagem, torna-se capaz de gerir seus próprios destinos. Um povo esclarecido jamais será escravo ou subserviente a uma classe. Uma sociedade humana justa e feliz (mesmo respeitando as limitações do que se interpreta como felicidade) é construída com escolas e bibliotecas.
Fica então o desafio de plantarmos livros, com as temáticas mais diversas, ao longo dos caminhos, pois assim eles nos proporcionarão não apenas conhecimento, mas também lazer e material para nossos mais loucos sonhos.

23 HORAS

23 HORAS (FL.SCHROEDER 01/07/09)

Gil Salomon

Minto. O rodapé do meu monitor mostra que já avancei onze minutos naquilo que, ainda há pouco, chamava de amanhã. Pois então voltemos no tempo. As vinte e três horas eu sai do recanto onde ensaiamos, carinhosamente chamado de estúdio, com a cabeça cheia de melodias e idéias. Há tanto por fazer e aquilo que chamamos de tempo nos escapa e, quando nos apercebemos, já é tão tarde que, como já disse alguém, é quase cedo. No caminho para casa ainda passei por Guaramirim, onde deixei um amigo percussionista, o Luan. Voltei depois, solitário, em meu potente um.ponto.zero.flex, meditando, não com meus botões, sobre o silêncio do que não fazemos.
Na minha imaginação vejo quarenta violões silenciosos, esperando por mãos que os façam vibrar, que novamente brotem melodias das cordas enferrujadas onde hoje só se ouve o empoeirado silêncio dos que não percebem o milagre da música. Vejo crianças ávidas por formas de expressão e lhes negamos os recursos da arte, fechamos para elas a mais bela linguagem que o espírito humano já concebeu. A expressão e percepção artística plenamente incorporada ao dia a dia das pessoas transformariam o mundo.
Vivemos um dos mais delicados momentos que a civilização já presenciou. Sabemos da necessidade de mudarmos nossos paradigmas se quisermos sobreviver nesse planeta, mas não tomamos atitudes concretas que nos levem em direção a essas mudanças. Insistimos em repetir o velho, o que não funcionou. Günter Grass, Nobel de Literatura de 1999, no livro A Ratazana, descreve a humanidade caminhando por caminhos repletos de avisos: não siga por aí, pare enquanto é tempo, etc., mas ela segue em frente, sempre esperando um milagre, alguém que surja sobre as nuvens e restabeleça o paraíso perdido, digo, destruído.
Nosso modelo educacional está apenas voltado à formação de “bons cidadãos”, peças úteis ao funcionamento da complexa engrenagem na qual inserimos nossos filhos. Desprezamos a formação humana e afetiva e focamos apenas o lado racional e prático. Para manter o modelo social vigente precisamos de trabalhadores e consumidores pragmáticos, sem muitas frescuras culturais. A política do pão e circo (panem et circenses) ainda vigora. Sempre haverá uma grande produtora cinematográfica lançando algo como um Spider Man XVII ou, quem sabe, uma releitura do clássico (sic) King Kong. Ao invés de colocarmos um livro, um instrumento musical, alguns pincéis ou qualquer outra ferramenta, que estimule as pessoas a pensarem e questionarem, nós preferimos ocupar suas mãos e mentes com novos jogos, novas necessidades e desejos e, assim, os mantemos pacíficos e úteis aos nossos propósitos.
A partir do momento em que tomamos consciência da responsabilidade perante o que nos rodeia é possível começar um trabalho rumo à humanização da formação do ser humano. É um caminho árduo, mas não podemos ser passivos e coniventes com os rumos que estamos tomando. Podemos não fazer uma revolução, mas trabalhar os pequenos gestos. As maiores realizações da humanidade não são mais que a soma de milhares de pequenas e solitárias atitudes. Se não desisto dessa crença na capacidade de revertermos esse caminho suicida que hoje trilhamos, não é por ser brasileiro, mas sim por ter a certeza da plena realização dos nossos sonhos se os tirarmos do plano onírico e os pousarmos no terreno sólido dos nossos dias. Fecho minha reflexão ouvindo uma canção da Mongólia executada pelo Terra Sonora. Não sabe quem é? Pesquise...

A CONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA

A CONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA (FL.SCHROEDER 15/06/09)

Gil Salomon

Ouço “Clair de Lune”, de Claude Debussy. Dirijo-me à janela para ver a lua, mas abrindo-a sinto no rosto o vento frio e algumas gotas de chuva. Fecho meu casaco e sinto um arrepio, daqueles de gelar até os ossos. Respiro o medo da cidade.
Até a pouco falávamos na velocidade com que recebíamos as notícias do mundo. Hoje as recebemos em tempo real. Assistimos ao vivo os bombardeios de Bagdá, os tiroteios nas favelas cariocas, as missas do Papa, os papos sem conteúdo do “Big Brother Brasil”, etc, etc, etc... Desenvolvemos uma curiosidade mórbida pela violência, protegidos frente as nossas telas de alta resolução, comendo salgadinhos e tomando a bebida da moda. Os dirigentes do espetáculo garantem, em longos discursos, que toda violência se justifica na busca eterna da paz. Paz jamais alcançada, ou, se alcançada é por pequenos períodos de tempo.
Somos, conforme muitas tradições religiosas, a imagem e semelhança de deus, o supra-sumo da criação, o mais alto grau evolutivo das espécies que habitam este planeta e, ao nascermos, somos comparados a inocentes anjinhos. O que nos transforma em adultos violentos, destituídos de qualquer sentimento de compaixão? Falamos muito em amor, comercializamos produtos em nome do amor, mas não amamos nem a nós mesmos, pois se o fizéssemos não nos degradaríamos tanto na busca de objetivos que apenas nos animalizam, que buscam apenas a satisfação dos nossos mais baixos instintos, instintos que, por termos a capacidade de dominá-los geram o diferencial em relação aos demais seres vivos. Nos animais os instintos não produzem violência, servem para a preservação da espécie, nos seres humanos quando colocamos nossa inteligência a serviço dos instintos criamos monstros que colocam em risco a sobrevivência da própria terra.
Num exame de consciência descobrimos que nos tornamos filhos do medo. Desde o nascimento somos cercados pelo medo, o medo dos nossos pais que temem que não sobrevivamos, o medo de que se esqueça de nos aplicarem as vacinas corretas, o medo de que nos sufoquemos durante o sono. Mais tarde o medo de que possamos nos machucar ao darmos os primeiros passos, o medo de que não estejamos dentro dos parâmetros da normalidade e assim por diante. Nossas primeiras lembranças são de milhões de nãos: não pegue nisso que dá choque, não suba aí que você poderá cair, não fale essas palavras que são feias, não coma isso, pois lhe fará mal. De não em não crescemos e conosco cresce o medo, e o medo nos coloca na defensiva ou no ataque preventivo. Acreditamos piamente que a melhor defesa é o ataque. Vivemos competindo uns com os outros. Adultos, desenvolvemos outros medos: de nos acharem diferente, de não vencermos profissionalmente, de não sermos atraentes sexualmente, de contrairmos alguma doença, de enfrentar os mistérios da existência e das suas razões, o medo do que nos reserva a morte - e assim de medo em medo construímos nossa personalidade e nosso caráter, ou a falta dele. A soma de todos esses medos nos torna violentos e agressivos. Agredimos os colegas de trabalho na busca de posições superiores e melhor remuneradas; agredimos os semelhantes nas mais diversas situações: seja no trânsito, na fila de banco, num supermercado. Agredimos nossos familiares impondo nossas idéias, nossas vontades. Matamos desta forma qualquer possibilidade de ternura e compaixão que poderiam nos libertar deste círculo vicioso que criamos ao alimentar nossos medos.

CONSUMATUM EST

CONSUMATUM EST... (FOLHA DE SCHROEDER 01/06/09)

Gil Salomon

Ruídos. Minha vida é um deserto repleto de sons. Portas rangem. O coração forçando o sangue a me percorrer. Flautas e violinos mozartianos. Cães ladram para a lua que ainda não apareceu. Soluço. Abro meu peito e tento arrancar o sentimento que me sufoca, mas não ouso tocá-lo. A vida não teria sentido sem esse amor temperado com o ardor da paixão. Choro? Sim, choro. Dos olhos fluem lágrimas ácidas que corroem meu rosto. Trago na alma e no corpo as marcas dessa busca angustiante. Atravessei eras a tua procura e agora, que estás há um toque das minhas mãos eu não consigo te tocar. Preciso tanto te abraçar. Meus dedos querem acariciar tua pele. Meus lábios sussurram teu nome. A soma do um mais um, que somos, terá que ser infinitamente maior que dois. Um poeta escreveu que a borboleta é uma flor com uma abelha dentro. Tu és alguém com um anjo dentro. O ser que me habita ama profundamente esse anjo, e o homem que sou ama quem és apaixonadamente. Já não sei o que fazer das minhas longas noites insones, das madrugadas em que caminhas nos meus “entressonhos” e dos dias que se arrastam lentos em direção à noite eterna. Logo sairei para mais um dia, romperei as brumas matinais em direção ao sol, ao céu azul. Curioso como o sol do final de outono se parece com o sol dos primeiros dias de primavera. A diferença é que o sol de outono prenuncia o inverno, dias gelados e solitários, talvez. Quem escreveu a fórmula do mel? Provavelmente foi quem nos inscreveu nessa ópera bufa que é a vida. Tateamos às cegas procurando entender o enredo, mas quando pressentimos um pequeno facho de luz, que poderia clarear as coisas percebemos, também, que as cortinas estão a se fechar.
O apito irritante do guarda noturno invade meus pensamentos dando uma falsa sensação de segurança. Que segurança nós procuramos afinal? Não sabemos nem se nosso coração baterá daqui a alguns segundos, mas nos iludimos procurando sempre a maldita zona de conforto que, enganosamente, nos promete o futuro que almejamos. Grande parte dos que descansam suas vazias cabeças em macios travesseiros não sabe nada além da monotonia dos dias que se repetem. Não ousam nada, apenas procuram se enquadrar nas medidas que lhes são propostas. Sentem o desconforto do leito de Procusto, mas falta-lhes coragem para assumirem quem realmente são.
Torna-te quem tu és, disse Friedrich Wilhelm Nietzsche. Mas quem somos nós afinal? Tantos procuram nos definir, mas raramente paramos para lançar um olhar para dentro de nós. Sufocamos nossos sentimentos mais profundos. Tememos até nossos pensamentos, pois podem, de repente, como um espelho, refletir quem somos realmente. Preenchemos nossos dias com mil sons e imagens. Dopamos e embriagamos nossas almas e navegamos pela vida nos enganando, achando que realmente tomamos as decisões que norteiam os dias tão curtos que vivemos. Trabalhamos avidamente, pois afinal sempre nos falaram que o trabalho dignifica. Acumulamos bens ou dívidas e seguimos curvados pelo peso das muitas responsabilidades que cremos ter. Planos de saúde, aposentadorias, carnês, contas, contas e contas...
Mas eis que um dia abrimos os olhos e vemos parada à nossa frente uma velha senhora, a dona da foice que nos ceifará. Relembramos os dias pregressos e percebemos que fizemos tão pouco, mas então será tarde. Consumatum est... Saímos da vida sem saber se teremos outra chance.

SONHOS

SONHOS (FOLHA DE SCHROEDER 15/05/2009)

Gil Salomon

Após o jantar deitei no sofá e comecei a cochilar, estava na fronteira entre o sono e a consciência. Despertei e comecei a lembrar dos estranhos sonhos que já tive em meus sonos. Quase sempre lembro claramente dos sonhos após acordar. Mas afinal o que os produz? Antigamente os sonhos eram vistos como revelações do além e pessoas que se diziam capazes de decifrá-los galgavam altos postos juntos aos monarcas, principalmente, e aos poderosos. Hoje a ciência procura desmascarar o misticismo que sempre os cercou afirmando que são produzidos pelas impressões gravadas do nosso cotidiano, experiências, traumas, desejos não realizados. Mesmo assim os sonhos ainda fascinam.
Quando criança costumava ter sonhos recorrentes. Num deles observava um rio do alto de um barranco. De repente o barranco começava a desmoronar e eu começava a correr, quanto mais corria mais rápido ele desmoronava e, após um tempo, que sempre parecia enorme, acordava suado e assustado. Já não sonho mais com o rio, até por que o rio da minha Schroederstrasse encolheu e já não passa de um pequeno riacho de águas sujas. Havia também os sonhos quase cômicos. Várias vezes sonhei estar numa festa, num salão cheio de pessoas bem vestidas, mas de repente, ao olhar para baixo percebia haver esquecido de calçar um sapato. Lá estava eu com um sapato e um chinelo, procurando, se possível, esconder um pé e torcendo para que ninguém percebesse.
Já na faculdade de parapsicologia fui aconselhado a fazer uma regressão às minhas vidas passadas para tentar descobrir o porquê de um sonho que voltava sempre. Sonhava estar cercado por pessoas conhecidas, quando começava lentamente a perder a visão até cegar completamente. Desesperado chamava pelos meus amigos, mas por mais que chamasse, mesmo sentindo estar cercado por eles, ninguém respondia. Aproveitei a vinda de um parapsicólogo, especialista em regressões, e me inscrevi para fazer a experiência. Após uma sessão ele concluiu que em uma vida pregressa eu havia sido um membro da chamada seita dos cátaros, que surgiu no sul da França no século XI e foi exterminada no século XIII. Nessa vida fui condenado à fogueira, mas antes disso fui cegado e isso teria deixado marcas muito fundas em minha alma. Fiquei impressionado na ocasião, mas depois de assistir a várias outras pessoas passarem pela experiência da regressão tornei-me cético pelo grande número de Napoleões, Dom Pedros e Princesas Isabéis que surgiram das vidas passadas delas.
Certa vez tive um sonho futurista, surreal. Meu pai e eu vínhamos da roça quando escutamos um barulho no céu. Ao olharmos deparamos com centenas de aviões sobrevoando o céu de Schroeder. Havia aviões de todos os tipos e naves estranhas entre eles, naves que só em filmes de ficção seriam possíveis. Quando tive este sonho ainda não conhecia o filme “O Dia em que a Terra Parou”. Corremos para casa e encontramos mamãe assistindo a um pronunciamento na televisão. Um repórter declarava que naquele dia a Terra havia sido invadida por extraterrestres que se diziam protetores do planeta. Anunciou que, por tempo indeterminado, estavam proibidas quaisquer intervenções que afetassem o ecossistema, como plantar e colher qualquer planta, matar ou caçar qualquer animal. A partir daquele dia seriam distribuídos alimentos sintéticos aos humanos.
Não provei os tais alimentos, pois acordei em seguida, mas continuo fascinado pelos meus sonhos malucos.